Maurício Terciotti
I Introdução
O Brasil é um país que, ao longo de sua história, tem se destacado por um sistema jurídico robusto e complexo, onde o contencioso desempenha um papel central na resolução de conflitos e na interpretação das leis. A cultura do litígio é profundamente enraizada na sociedade brasileira, refletindo a busca por justiça e a defesa de direitos individuais e coletivos. Nesse contexto, a atuação do Poder Judiciário é fundamental, não apenas para a solução de disputas, mas também para a construção e a consolidação de precedentes que orientam a aplicação do direito.
Um dos mecanismos mais importantes nesse cenário é a repercussão geral, prevista no § 3º do artigo 102 da Constituição Federal.
Esse instituto tem como objetivo garantir que apenas questões de relevância social, econômica ou jurídica sejam apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), evitando a sobrecarga do Judiciário e promovendo a uniformidade na interpretação das normas. A repercussão geral permite que decisões do STF tenham um impacto significativo, não apenas sobre o caso específico em questão, mas também sobre uma série de situações semelhantes, proporcionando segurança jurídica e previsibilidade.
A repercussão geral contribui para a eficiência do sistema judiciário, ao filtrar os casos que realmente demandam a análise do STF, permitindo que o tribunal se concentre em questões que afetam um número significativo de pessoas ou que possuem grande relevância para a sociedade. Além disso, a repercussão geral promove a igualdade no tratamento de casos semelhantes, assegurando que decisões judiciais sejam aplicadas de maneira consistente e equitativa.
O Brasil, com seu foco no contencioso, encontra na repercussão geral um instrumento essencial para a promoção da segurança jurídica.
A seguir, apresentaremos casos recentes de repercussão geral no STF que afetam diretamente as empresas do setor de seguros.
II Casos Chave
Tema 1214/STF: Incidência do ITCMD sobre o plano Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL) e o Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL) na hipótese de morte do titular do plano.
Em dezembro/2024, o STF fixou a tese que “É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) quanto ao repasse, para os beneficiários, de valores e direitos relativos ao plano Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL) ou ao Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL) na hipótese de morte do titular do plano”.
O relator, ministro Dias Toffoli, seguido por todos os ministros, argumenta que os beneficiários têm acesso aos valores do VGBL e PGBL com base em um vínculo contratual, e não por meio de herança. Ele ressaltou, no entanto, que isso não impede que a Receita Federal atue contra possíveis tentativas de dissimulação do fato gerador do imposto, que possam surgir através de planejamentos fiscais abusivos.
Vale destacar que as alíquotas do ITCMD podem variar entre 2% e 8%, ou seja, dependendo do valor envolvido a cobrança do imposto não é módica e, atualmente, diversas leis estaduais dispõem sobre a incidência do ITCMD nessa situação.
Aguarda-se a aprovação pelo Senado Federal do PLP 108/2024, que, em seu texto final, teve retirada a incidência do ITCMD sobre o VGBL e a PGBL.
Tema 1280/STF – Exigibilidade do PIS/COFINS em face das entidades fechadas de previdência complementar (EFPC), tendo presentes a Lei 9.718/1998 e o conceito de faturamento, considerando-se a redação original do art. 195, I, da Constituição Federal.
Esse caso, não unânime no STF, teve como origem recurso contra decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), que determinou a incidência de contribuições sobre as receitas geradas por aplicações e investimentos financeiros da Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ) com fundamento na Lei 9.718/1998, que exige que as entidades de previdência privada recolham contribuições sobre os rendimentos destinados a benefícios de aposentadoria e pensão.
No STF, a Previ argumentou que suas atividades são sem fins lucrativos e que suas receitas provêm apenas das contribuições de participantes e da patrocinadora, além dos rendimentos de seus investimentos.
O ministro Gilmar Mendes, no entanto, defendeu que os rendimentos das aplicações financeiras são considerados atividades empresariais típicas, justificando a incidência das contribuições sobre esses valores. Ele destacou que esses rendimentos são uma das principais fontes de receita das entidades de previdência e não devem ser vistos como acessórias. A ministra Cármen Lúcia e os ministros Flávio Dino, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin concordaram com esse entendimento.
Em contrapartida, o ministro Dias Toffoli, relator da outra corrente, argumentou que as atividades de aplicações financeiras não são típicas das entidades previdenciárias, pois não representam contraprestação pela administração de planos de benefícios. Essa posição foi acompanhada pelos ministros Edson Fachin, André Mendonça, Luiz Fux e Nunes Marques.
Assim, com julgamento apertado, a tese firmada foi que “É constitucional a incidência de PIS e COFINS em relação a rendimentos auferidos em aplicações financeiras das entidades fechadas de previdência complementar (EFPC)”.
Tema 1309/STF – Exigibilidade do PIS e da COFINS sobre as receitas financeiras oriundas de aplicações financeiras das reservas técnicas de empresas seguradoras.
No Tema 372/STF ficou decidido que “As receitas brutas operacionais decorrentes da atividade empresarial típica das instituições financeiras integram a base de cálculo PIS/COFINS cobrado em face daquelas ante a Lei nº 9.718/98, mesmo em sua redação original, ressalvadas as exclusões e deduções legalmente prescritas.”
O Ministro redator para acórdão, Dias Toffoli, excluiu de forma clara a aplicação do entendimento utilizado naquele caso às empresas seguradoras, reconhecendo, de maneira implícita, que essas entidades podem apresentar particularidades relacionadas à definição de suas atividades características.
O Tema 1309 é distinto do Tema 372 pois, conforme exposto pelo Ministro Luiz Fux, no acórdão que definiu a repercussão geral do Tema, publicado em novembro/2024:
5. Em sendo a manutenção de reservas técnicas obrigação imposta às empresas seguradoras pelo Decreto-Lei nº 73/1966 com vistas à garantia das obrigações assumidas junto aos usuários no mercado, faz-se necessário definir com eficácia erga omnes se as receitas provenientes da aplicação destes recursos integram ou não o conceito constitucional de faturamento, constante do art. 195, I, “b”.
6. A matéria possui natureza constitucional, porquanto relativa à interpretação de conceito utilizado pela Constituição como base de cálculo das contribuições sociais para a seguridade social. A matéria se reveste, outrossim, de evidente relevância social e econômica, dado o papel fundamental que os contratos de seguro exercem no mercado produtivo e os interesses sociais que estas que estas empresas ajudam a garantir e preservar.
No entanto, em nossa humilde opinião, não faz sentido o julgamento do tema 1309, pois a matéria já foi integralmente analisada e julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Quando analisamos o RE 400.479, de relatoria do então ministro Cezar Peluso, decidiu-se que deveria ser excluída da base de cálculo da COFINS qualquer receita estranha ao conceito de faturamento da Seguradora, entendido esse como a “receita bruta das vendas de mercadorias e da prestação de serviços de qualquer natureza, ou seja, soma das receitas oriundas do exercício das atividades empresarias”.
Em análise dos embargos de declaração no mesmo caso, o eminente Ministro Peluso foi enfático de que: “Conquanto não vincule a interpretação constitucional, tal definição oferece ponto sustentável de partida metodológica para compreender faturamento como expressão da receita advinda da realização da finalidade da empresa ou de seu objeto social, o que lhe exclui, de plano, abrangência de meras atividades acessórias, receitas puramente financeiras, ingressos esporádicos, como a venda de bens do ativo permanente, e meras entradas, dentre muitas outras.”
O voto do Ministro Peluso é no sentido de que são tributáveis as receitas de prêmio e não são tributáveis as demais receitas, inclusive as de aplicação de reservas técnicas.
Para que não pairassem dúvidas sobre a interpretação do ministro Cezar Peluso no referido Leading Case, as partes juntaram ao processo parecer proferido pelo próprio ministro esclarecendo o alcance do seu voto. O ministro Peluso é claro e enfático no sentido de que o seu voto contempla a discussão sobre a incidência de PIS e COFINS sobre os rendimentos das reservas técnicas.
O Ministro Toffoli deu a mesma interpretação ao voto do Ministro Peluso e, inclusive, citou o parecer do Ministro Peluso, apresentando voto verdadeiramente exauriente sobre a matéria, dando provimento aos embargos de declaração para, destrinchando as receitas levadas à análise pela Seguradora, fixar que apenas o prêmio de seguro reflete a atividade típica do setor, ressalvando expressamente a não incidência das Contribuições ao PIS e à COFINS sobre as receitas financeiras provenientes de reservas técnicas. Eis as palavras do Ministro Toffoli:
“O que remanesce nos autos é saber se as receitas decorrentes de prêmios auferidos em razão dos contratos de seguro estão ou não incluídas na materialidade da contribuição para o PIS e da COFINS no período compreendido entre fevereiro/99 e dezembro/14, na medida em que as Leis no 10.637/02 e 10.833/03 mantiveram as seguradoras e outras empresas equiparadas na sistemática cumulativa da Lei no 9.718/98, cujo art. 3º somente foi alterado para remeter ao conceito de receita bruta da legislação do imposto de renda (art. 12 do Decreto-Lei no 1.598/77) com a Lei no 12.973/14, a qual passou a produzir efeitos, nesse ponto, a partir de 1o de janeiro de 2015.
(…)
No que diz respeito as seguradoras, não é preciso muito esforço para concluir que sua atividade empresarial típica é, justamente, oferecer o contrato de seguro. E, nesse contrato, o que as seguradoras recebem como contrapartida é justamente o prêmio, o qual geralmente varia em função dos interesses garantidos e dos riscos predeterminados.
(…)
Por qualquer ângulo que se analise a noção de faturamento considerando-se as sociedades seguradoras, portanto, o prêmio se insere na receita bruta operacional, decorrente de sua atividade empresarial típica. E, nessa toada, integra o prêmio a base de cálculo do PIS/COFINS por elas devido.
De outro giro, é certo que não decorrem da atividade empresarial típica das seguradoras as receitas financeiras oriundas das aplicações financeiras das reservas técnicas. Adoto, aqui, a compreensão do Ministro Cezar Peluso, cujo voto já indicava que é o prêmio que decorre da atividade empresarial típica das seguradoras, e não outras receitas alheias ao desempenho de seu mister típico, como são as receitas financeiras em questão.
(…)
Ante o exposto, acompanho o Relator, Ministro Cezar Peluso, acolhendo os embargos de declaração para prestar esclarecimentos, nos termos da fundamentação supra, sem alteração do teor do acórdão embargado, deixando assente que, para as seguradoras, não consistem em faturamento as receitas financeiras oriundas das aplicações financeiras das reservas técnicas.”
O voto do Ministro Relator Cezar Peluso foi acompanhado pelos Ministros Dias Toffoli, Edson Fachin, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Roberto Barroso, Nunes Marques e Rosa Weber. Divergiram os Ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski.
O Ministro Edson Fachin inclusive levantou questão de ordem no sentido de que a matéria das receitas financeiras das reservas técnicas não deveria ser analisada no referido leading case, mas foi voto isolado e vencido neste sentido.
Assim, ficou decidido pelo STF de que apenas o prêmio recebido pelas seguradoras estaria sujeito ao PIS e à COFINS, estando fora do seu âmbito de incidência outras receitas que não sejam consideradas operacionais, como por exemplo as receitas financeiras das reservas técnicas.
O escopo do julgamento do Tema 1309 é – e somente pode ser – com relação ao período posterior ao ano de 2015, quando entrou em vigor a Lei nº 12.973/2014 que deu nova base legal sobre o assunto.
III – Conclusões
É essencial o acompanhamento de teses de repercussão geral no STF e repetitivos no STJ (que tem a mesma função de uniformizar a jurisprudência em Âmbito infraconstitucional).
Embora os casos chave que impactam diretamente o setor securitário em âmbito tributário sejam os aqui elencados, existem diversos outros que também afetam o setor como, por exemplo, se a oferta de seguro garantia obsta encaminhamento do título a protesto e a inscrição do débito tributário no Cadin (Tema 1263/STJ) e o marco inicial do prazo decadencial para impetração de mandado de segurança impugnando obrigação tributária que se renova periodicamente (Tema 1273/STJ).