A LC nº 194/2022 e a amplitude de seus efeitos para fins de (não) incidência do ICMS sobre a TUST e a TUSD

A publicação da Lei Complementar nº 194/2022 foi amplamente noticiada nos meios de comunicação por limitar a alíquota do ICMS incidente nas operações com combustíveis, entre outros (como o gás natural, a energia elétrica, as comunicações e o transporte coletivo), gerando a redução dos preços aos consumidores praticados após seguidas altas.

Outra alteração relevante, ainda que sem o mesmo apelo midiático, foi a introdução do inciso X ao artigo 3º da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir), dispondo expressamente que o ICMS não incide sobre “serviços de transmissão e distribuição e encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica”.

Este dispositivo remonta à controvérsia há muito conhecida pelos Tribunais Pátrios, na qual os contribuintes pleiteiam a exclusão, da base de cálculo do ICMS incidente sobre as faturas de energia elétrica, da TUST – Tarifa de Uso do Sistema Elétrico de Transmissão e da TUSD – Tarifa de Uso dos Sistemas Elétricos de Distribuição.

Em síntese, a TUST e a TUSD são tarifas pagas pelos agentes do setor elétrico em função da utilização dos sistemas de transmissão e distribuição de energia elétrica, cujo encargo é repassado ao consumidor.

Sustentam os contribuintes, entre outros argumentos, que o fato gerador do ICMS ocorre no momento que a energia sai do estabelecimento do fornecedor, sendo efetivamente consumida, não devendo compor a base de cálculo do imposto os encargos relativos às fases de transmissão e distribuição de energia, dentre os quais se incluem o TUST e o TUSD. Já o fisco defende que as peculiaridades do fornecimento de energia elétrica revelam que a geração, transmissão e a distribuição formam o conjunto dos elementos essenciais que compõem o aspecto material do fato gerador do ICMS, razão pela qual as taxas integram o preço total da operação mercantil.

A controvérsia foi afetada para julgamento pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça – STJ, sob o rito de recursos repetitivos (artigos 1.036 e 1.037 do CPC), que decidirá a questão nos Recursos Especiais nº 1.692.023, n. 1.699.851 e n. 1.163.020 (tema nº 986).

Entretanto, uma questão que surge é sobre a (eventual) prejudicialidade do julgamento ante a edição da LC nº 194/2022, que consignou que as tarifas em questão estão fora do campo de incidência do ICMS.

Num primeiro momento, há de se destacar que, passados aproximadamente dois meses (data do texto: 23 de agosto de 2022) desde a publicação da LC em análise (23 de junho de 2022), diversos Estados, quiçá a maioria, ainda não dispuseram sobre a não incidência do ICMS sobre a TUST e TUSD.

Há de se considerar que tal alteração nas legislações estaduais é relevante para conferir segurança jurídica aos contribuintes, porém, na prática, a eventual cobrança do ICMS sobre as tarifas encontra óbice no § 4º do artigo 24 da Constituição Federal, que determina a suspensão da eficácia da legislação estadual no que contrariar a lei federal que disponha sobre normas gerais[1].

Nos parece que a novel legislação, ao consignar a não incidência do ICMS sobre a TUST e da TUSD, visa tão somente aclarar a inexigibilidade do imposto sobre tais importâncias sem que isso constitua qualquer inovação normativa. Trata-se, pois, de norma de cunho interpretativo, que deve ser aplicada aos fatos geradores posteriores e anteriores à sua edição.

Para tal conclusão, necessário estabelecer a distinção entre isenção e não incidência. Enquanto na isenção a lei retira parcela dos fatos que constituem a hipótese de incidência do tributo, a não incidência se verifica a partir da própria regra da tributação, sendo representada pelos fatos que não estão descritos como materialidades sujeitas àquela exação.

Em regra, a não incidência é identificada pela exclusão da regra de tributação. Entretanto, pode o legislador tratar a não incidência de forma expressa, em caráter excepcional, justificado pela existência de dúvida na interpretação da regra de incidência de determinado tributo. São as denominadas hipóteses de não incidência legal, ou de direito, conforme leciona Hugo de Brito Machado[2].

Esta excepcional intervenção legislativa não visa, pois, obstar a cobrança do imposto sobre determinada parcela de fatos tidos como tributáveis, como no caso da isenção; as ditas hipóteses de não incidência legais objetivam tão somente aclarar que uma situação ou materialidade não se encontra no espectro de incidência do tributo tratado.

Vejamos, neste sentido, que as hipóteses de não incidência legalmente qualificadas, constantes no artigo 3º da Lei Kandir, listam de forma exemplificativa algumas situações nas quais o ICMS sequer poderia incidir, seja por força de imunidade (operações com ouro, exportações, etc.) ou mesmo por não constituírem hipótese de incidência do imposto (arrendamento mercantil, p. ex.).

As inserções neste artigo, nomeadamente os incisos IX e X, objetivam tão somente esclarecer que os fatos ali descritos não constituem hipótese de incidência do ICMS, não representando qualquer inovação no aspecto material do imposto estadual[3].

Portanto, na ocasião do vindouro julgamento do tema 986, o Superior Tribunal de Justiça terá de enfrentar a questão da prejudicialidade da discussão envolvendo a incidência do ICMS sobre a TUSD e da TUSD trazida pela LC nº 194/2022.

Sem prejuízo, os contribuintes devem questionar a tributação no Poder Judiciário, seja em relação aos fatos geradores pretéritos à LC nº 194/2022 e, ainda, eventualmente em relação ao período posterior caso experimentem a indevida tributação em razão da eventual ausência de adequação da legislação estadual aos termos da lei federal.

A equipe do Terciotti, Andrade, Gomes e Donato Advogados possui expertise nas áreas de Direito da Energia e de Direito Tributário, tendo profissionais capacitados para atender, assessorar e representar os contribuintes na recuperação dos valores indevidamente pagos a título de ICMS sobre a TUST e a TUSD.

Por Daniel Andrade, Edgar Gomes, Marvin Menezes e Thiago Sarraf

dandrade@tagdlaw.com

edgar.gomes@tagdlaw.com

marvin.menezes@tagdlaw.com

thiago.sarraf@tagdlaw.com


[1] Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;

(…)

§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

[2] Curso de Direito Tributário, 31ª Edição, revista, atualizada e ampliada. Malheiros : 2010, pg. 243.

[3] Destacando-se que, no que concerne às operações “de que decorra a transferência de bens móveis salvados de sinistro para companhias seguradoras” tratadas no inciso IX, a não incidência fora reconhecida de forma expressa por grande parcela dos Estados, como o Amazonas (RICMS/AM, artigo 4º, inciso IX), Rio de Janeiro (RICMS/RJ, artigo 47, inciso XXI) e São Paulo (RICMS/SP, artigo 7º, XVI).

A LC nº 194/2022 e a amplitude de seus efeitos para fins de (não) incidência do ICMS sobre a TUST e a TUSD

A publicação da Lei Complementar nº 194/2022 foi amplamente noticiada nos meios de comunicação por limitar a alíquota do ICMS incidente nas operações com combustíveis, entre outros (como o gás natural, a energia elétrica, as comunicações e o transporte coletivo), gerando a redução dos preços aos consumidores praticados após seguidas altas.

Outra alteração relevante, ainda que sem o mesmo apelo midiático, foi a introdução do inciso X ao artigo 3º da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir), dispondo expressamente que o ICMS não incide sobre “serviços de transmissão e distribuição e encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica”.

Este dispositivo remonta à controvérsia há muito conhecida pelos Tribunais Pátrios, na qual os contribuintes pleiteiam a exclusão, da base de cálculo do ICMS incidente sobre as faturas de energia elétrica, da TUST – Tarifa de Uso do Sistema Elétrico de Transmissão e da TUSD – Tarifa de Uso dos Sistemas Elétricos de Distribuição.

Em síntese, a TUST e a TUSD são tarifas pagas pelos agentes do setor elétrico em função da utilização dos sistemas de transmissão e distribuição de energia elétrica, cujo encargo é repassado ao consumidor.

Sustentam os contribuintes, entre outros argumentos, que o fato gerador do ICMS ocorre no momento que a energia sai do estabelecimento do fornecedor, sendo efetivamente consumida, não devendo compor a base de cálculo do imposto os encargos relativos às fases de transmissão e distribuição de energia, dentre os quais se incluem o TUST e o TUSD. Já o fisco defende que as peculiaridades do fornecimento de energia elétrica revelam que a geração, transmissão e a distribuição formam o conjunto dos elementos essenciais que compõem o aspecto material do fato gerador do ICMS, razão pela qual as taxas integram o preço total da operação mercantil.

A controvérsia foi afetada para julgamento pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça – STJ, sob o rito de recursos repetitivos (artigos 1.036 e 1.037 do CPC), que decidirá a questão nos Recursos Especiais nº 1.692.023, n. 1.699.851 e n. 1.163.020 (tema nº 986).

Entretanto, uma questão que surge é sobre a (eventual) prejudicialidade do julgamento ante a edição da LC nº 194/2022, que consignou que as tarifas em questão estão fora do campo de incidência do ICMS.

Num primeiro momento, há de se destacar que, passados aproximadamente dois meses (data do texto: 23 de agosto de 2022) desde a publicação da LC em análise (23 de junho de 2022), diversos Estados, quiçá a maioria, ainda não dispuseram sobre a não incidência do ICMS sobre a TUST e TUSD.

Há de se considerar que tal alteração nas legislações estaduais é relevante para conferir segurança jurídica aos contribuintes, porém, na prática, a eventual cobrança do ICMS sobre as tarifas encontra óbice no § 4º do artigo 24 da Constituição Federal, que determina a suspensão da eficácia da legislação estadual no que contrariar a lei federal que disponha sobre normas gerais[1].

Nos parece que a novel legislação, ao consignar a não incidência do ICMS sobre a TUST e da TUSD, visa tão somente aclarar a inexigibilidade do imposto sobre tais importâncias sem que isso constitua qualquer inovação normativa. Trata-se, pois, de norma de cunho interpretativo, que deve ser aplicada aos fatos geradores posteriores e anteriores à sua edição.

Para tal conclusão, necessário estabelecer a distinção entre isenção e não incidência. Enquanto na isenção a lei retira parcela dos fatos que constituem a hipótese de incidência do tributo, a não incidência se verifica a partir da própria regra da tributação, sendo representada pelos fatos que não estão descritos como materialidades sujeitas àquela exação.

Em regra, a não incidência é identificada pela exclusão da regra de tributação. Entretanto, pode o legislador tratar a não incidência de forma expressa, em caráter excepcional, justificado pela existência de dúvida na interpretação da regra de incidência de determinado tributo. São as denominadas hipóteses de não incidência legal, ou de direito, conforme leciona Hugo de Brito Machado[2].

Esta excepcional intervenção legislativa não visa, pois, obstar a cobrança do imposto sobre determinada parcela de fatos tidos como tributáveis, como no caso da isenção; as ditas hipóteses de não incidência legais objetivam tão somente aclarar que uma situação ou materialidade não se encontra no espectro de incidência do tributo tratado.

Vejamos, neste sentido, que as hipóteses de não incidência legalmente qualificadas, constantes no artigo 3º da Lei Kandir, listam de forma exemplificativa algumas situações nas quais o ICMS sequer poderia incidir, seja por força de imunidade (operações com ouro, exportações, etc.) ou mesmo por não constituírem hipótese de incidência do imposto (arrendamento mercantil, p. ex.).

As inserções neste artigo, nomeadamente os incisos IX e X, objetivam tão somente esclarecer que os fatos ali descritos não constituem hipótese de incidência do ICMS, não representando qualquer inovação no aspecto material do imposto estadual[3].

Portanto, na ocasião do vindouro julgamento do tema 986, o Superior Tribunal de Justiça terá de enfrentar a questão da prejudicialidade da discussão envolvendo a incidência do ICMS sobre a TUSD e da TUSD trazida pela LC nº 194/2022.

Sem prejuízo, os contribuintes devem questionar a tributação no Poder Judiciário, seja em relação aos fatos geradores pretéritos à LC nº 194/2022 e, ainda, eventualmente em relação ao período posterior caso experimentem a indevida tributação em razão da eventual ausência de adequação da legislação estadual aos termos da lei federal.

A equipe do Terciotti, Andrade, Gomes e Donato Advogados possui expertise nas áreas de Direito da Energia e de Direito Tributário, tendo profissionais capacitados para atender, assessorar e representar os contribuintes na recuperação dos valores indevidamente pagos a título de ICMS sobre a TUST e a TUSD.

Por Daniel Andrade, Edgar Gomes, Marvin Menezes e Thiago Sarraf

dandrade@tagdlaw.com

edgar.gomes@tagdlaw.com

marvin.menezes@tagdlaw.com

thiago.sarraf@tagdlaw.com


[1] Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;

(…)

§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

[2] Curso de Direito Tributário, 31ª Edição, revista, atualizada e ampliada. Malheiros : 2010, pg. 243.

[3] Destacando-se que, no que concerne às operações “de que decorra a transferência de bens móveis salvados de sinistro para companhias seguradoras” tratadas no inciso IX, a não incidência fora reconhecida de forma expressa por grande parcela dos Estados, como o Amazonas (RICMS/AM, artigo 4º, inciso IX), Rio de Janeiro (RICMS/RJ, artigo 47, inciso XXI) e São Paulo (RICMS/SP, artigo 7º, XVI).

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