Maurício Terciotti
I – A Legislação de Preços de Transferência Brasileira e suas Alterações
As regras de preços de transferência no Brasil foram introduzidas pela Lei 9.430/1996, na época que o Brasil começou a adotar a tributação universal de seus residentes.
Embora tenha sido defendido que as regras estavam alinhadas com as diretrizes da OCDE, a legislação foi objeto de críticas, por supostamente não seguir o princípio arm’s length da OCDE, que busca garantir que transações entre partes relacionadas sejam comparáveis às realizadas entre partes independentes.
Em 2018, a Receita Federal e a OCDE iniciaram um projeto para avaliar a metodologia vigente, resultando em um relatório em 2019 que identificou o seguinte (https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2023/abril/receita-federal-e-ocde-reforcam-apoio-ao-novo-sistema-de-precos-de-transferencia/o-novo-sistema-de-precos-de-transferencia-aperfeicoamento-do-sistema-tributario-brasileiro-e-promocao-do-comercio-e-do-investimento.pdf, p. 14/15):
“As principais conclusões do trabalho técnico foram que, por um lado, o sistema atual contém algumas características atrativas que podem apresentar um potencial de simplicidade e certeza, embora tais resultados nem sempre se concretizem em todos os casos. Por outro lado, constatou-se que o sistema contém lacunas e divergências significativas e carece de orientação baseada em princípios, o que impede a obtenção de resultados razoáveis no tratamento das diversas situações que ocorrem na realidade comercial das multinacionais. Como consequência, o sistema atual não reflete as realidades econômicas em mudança trazidas, por exemplo, pela crescente importância dos serviços intragrupo e intangíveis. Combinado com outras características únicas do sistema, como a abordagem de margens fixas rígidas e a liberdade de seleção do método de preços de transferência, o sistema atual leva a resultados negativos na forma de:
• Erosão da Base e Transferência de Lucros (BEPS) frequentemente combinada com dupla não-tributação – os lucros que pelo padrão internacional seriam alocados ao Brasil acabam transferidos para entidades estabelecidas em jurisdições de baixa ou nenhuma tributação. Isso impede o Brasil de arrecadar receitas tributárias em relação aos lucros das atividades econômicas realizadas no País.
• Dupla tributação – há casos documentados em que os mesmos lucros foram alocados para uma entidade brasileira devido à rigidez das margens de lucro prescritas nas transações de entrada e saída e ao mesmo tempo alocados para a parte estrangeira relacionada em uma jurisdição onde o princípio arm’s length é usado. Isso resulta na chamada dupla tributação econômica, em que as duas pessoas jurídicas são tributadas relativamente ao mesmo montante de lucro. Essa dupla tributação coloca um custo mais elevado para o comércio e investimento no Brasil quando comparado com outros países, o que desencoraja a expansão do investimento estrangeiro existente, bem como de novos investimentos, e prejudica a integração do Brasil nas cadeias de valor globais.
•Condições de concorrência não equitativas – já que tende a favorecer algumas empresas multinacionais ao possibilitar tributação reduzida, que se beneficiam de situações para erosão da base tributária e transferência de lucros (BEPS), e em outras situações provocar excesso de tributação devido à dupla tributação causada pelas lacunas e divergências entre o sistema brasileiro de preços de transferência e o padrão internacional.”
Assim, a Medida Provisória 1.152 foi assinada em 2022, estabelecendo novas regras de preços de transferência e foi convertida na Lei n. 14.596/2023 tendo as novas regras se tornado obrigatórias em 2024.
A nova legislação positivou o princípio arm’s length, definindo que os termos de transações controladas devem ser estabelecidos como se fossem entre partes não relacionadas (artigo 2º).
A lei também introduziu definição para “transações controladas” como sendo “qualquer relação comercial ou financeira entre 2 (duas) ou mais partes relacionadas, estabelecida ou realizada de forma direta ou indireta, incluídos contratos ou arranjos sob qualquer forma e série de transações” (artigo 3º).
A lei ainda determinou que “partes relacionadas” são caracterizadas “quando no mínimo uma delas estiver sujeita à influência, exercida direta ou indiretamente por outra parte, que possa levar ao estabelecimento de termos e de condições em suas transações que divirjam daqueles que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas em transações comparáveis” (artigo 4º), sendo que existem diversos exemplos no artigo 4º da Lei do que seriam as partes relacionadas e uma relação de controle.
O termo “entidade” foi também definido como sendo aquele que “compreende qualquer pessoa, natural ou jurídica, e quaisquer arranjos contratuais ou legais desprovidos de personalidade jurídica” (artigo 4º, parágrafo 2º). Foi eliminado o termo “empresa vinculada”, que apresentava limitações devido à diversidade de arranjos comerciais existentes atualmente.
Com essa nova abordagem, além dos casos mais evidentes de controle acionário — seja de forma direta ou indireta, por meio de empresas controladoras ou participações mínimas nos lucros —, o texto também abrange acordos de votação que visam influenciar decisões sociais. Essa definição se aplica a qualquer tipo de entidade, incluindo pessoas físicas, jurídicas e outros formatos contratuais ou legais.
A legislação estabeleceu a necessidade de comparação entre transações, considerando ajustes para eliminar diferenças materiais. O processo de conformidade com o princípio arm’s length envolve o delineamento da transação controlada e a análise de comparabilidade, conforme detalhado na nova lei. Esse processo de conformidade é essencial para a eficiência do grupo em preços de transferência. A lei também traz novos métodos para a aferição do compliance com as regras de preços de transferência, métodos esses usados pela OCDE.
Adicionalmente, a nova lei aborda transações com intangíveis, a prestação de serviços intragrupo, contratos de compartilhamento de custos e reestruturações, além de outros temas que impactam o mercado de ações, operações de crédito e até as penalidades impostas pela Receita Federal às empresas que não apresentarem a documentação exigida.
Além da nova legislação, é importante destacar o uso da tecnologia em diversas funções rotineiras das seguradoras e o local de tomada de decisão, bem como a função de cada filial na cadeia de valor dos serviços prestados.
II – Impacto nos contratos de seguros
A Exposição de Motivos da Medida Provisória 1.152/2022, convertida na nova Lei, deixou clara a importância de ter dispositivos específicos para operações financeiras, dentre elas, os seguros (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Exm/Exm-Mpv-1152-22.pdf):
“Os arts. 28 a 34 estabelecem o tratamento aplicável a operações financeiras, trazendo as diretrizes essenciais para o controle de preços de transferência de diversos tipos de transação, incluindo operações de dívida, garantias intragrupo, acordos de gestão centralizada de tesouraria (cash-pooling) e contratos de seguro. O Projeto de Medida Provisória proposto amplia o escopo do controle de preços de transferência sobre operações financeiras, que atualmente foca-se em operações de mútuo, sem fornecer a disciplina adequada para diversos tipos de transações relevantes, e veicula regras prescritivas que se afastam do princípio arm’s length e acarretam resultados indesejáveis.”
Os contratos de seguro estão previstos no artigo 33 da Lei. Diversos pontos são interessantes para destacar como, por exemplo, o enquadramento do contrato na definição da Lei sobre serviços, transferência de riscos da parte não relacionada para a parte relacionada, remuneração de intermediação e eventual coordenação de arranjo conforme o princípio arm´s length e alocação de benefícios de sinergia.
Abaixo, a redação do artigo:
“Art. 33. Os termos e as condições de uma transação controlada que envolva uma operação de seguro entre partes relacionadas, em que uma parte assuma a responsabilidade de garantir o interesse da outra parte contra riscos predeterminados mediante o pagamento de prêmio, e que seja delineada como serviço nos termos do art. 23 desta Lei serão estabelecidos de acordo com o princípio previsto no art. 2º desta Lei.
§ 1º Para fins do disposto no caput deste artigo, os arranjos que envolvam operações de seguro efetuadas com partes não relacionadas, em que parte ou totalidade dos riscos segurados seja transferida da parte não relacionada para partes relacionadas do segurado, serão considerados como transações controladas, estarão sujeitos ao princípio previsto no art. 2º desta Lei e serão analisados em sua totalidade.
§ 2º Nos casos em que o seguro celebrado com parte relacionada estiver relacionado com uma operação de seguro celebrada com parte não relacionada, o segurador vinculado que desempenhar as funções de intermediação entre os segurados vinculados e a parte não relacionada será remunerado de acordo com o princípio previsto no art. 2º, considerados as funções desempenhadas, os ativos utilizados e os riscos assumidos, e os benefícios de sinergia obtidos em decorrência do arranjo serão alocados entre os seus participantes de acordo com as suas contribuições, observado o disposto no art. 10 desta Lei.
§ 3º Quando for verificado que o contrato de seguro referido no caput deste artigo é parte de um arranjo em que partes relacionadas reúnam um conjunto de riscos objeto de seguro celebrado com um segurador não vinculado, os benefícios de sinergia obtidos em decorrência do arranjo serão alocados entre os seus participantes de acordo com as suas contribuições, observado o disposto no art. 10 desta Lei.
§ 4º Na hipótese de o contribuinte ou outra parte relacionada desempenhar a função de coordenação do arranjo de que trata o § 3º deste artigo, a sua remuneração será determinada de acordo com o princípio previsto no art. 2º desta Lei, considerados as funções desempenhadas, os ativos utilizados e os riscos assumidos.”
Seguir as novas regras de preços de transferência – tanto as gerais e as que envolvem intangíveis, serviços intragrupo, contratos de compartilhamento de custos e reestruturações societárias que afetam as empresas de seguro quanto o artigo 33, específico ao setor – é essencial para os grupos econômicos do setor.
Lembremos que não mencionamos aqui a aplicação das regras de preços de transferências para importação de seguros, já que provavelmente a SUSEP não permitirá tal importação. Por outro lado, os comentários do presente texto são integralmente aplicados para as demais operações internacionais realizadas pelas seguradoras.
III – Conclusões
O cenário internacional está em mudança constante e o compliance com as regras de preços de transferência se torna essencial para garantir a conformidade com o princípio do “arm’s length” pelas seguradoras, necessitando de atualizações constantes para refletir mudanças no grupo econômico, em suas transações e no ambiente regulatório, visando mitigar riscos.